Para ler enquanto o mundo acaba

Em um país continental rico em biodiversidade e santuário de uma das maiores reservas de água doce do mundo, é indispensável que conversemos mais sobre como temos defendido essa riqueza.

“Antropoceno” é o nome dado ao capítulo mais recente da história da Terra, período marcado pelo impacto da ação humana no mundo. Nele, o ser humano é definitivamente o protagonista, mas de um tipo bastante singular: um herói trágico. Trágico porque é bastante consciente do destino quase profetizado que o aguarda, e mesmo assim é incapaz de recalcular a rota de sua decadência.
Não porque ele não tem esperança, mas porque é incômodo demais assumir responsabilidade.

Eu não sei você, mas viver em um mundo às vésperas do colapso, sabendo que a humanidade (ou pelo menos a parte com poder suficiente) escolhe conscientemente este caminho, é, para mim, a pior história de terror. Vivemos à beira do abismo, e hoje, a Musa inspiradora segura a faca no pescoço do artista, e não temos como ignorar essa ameaça.

Mais do que nunca, os olhos do mundo se voltam para a Amazônia, uma área que extrapola os limites da fronteira nacional e abarca outros oito países. Seja pelas possibilidades de exploração econômica que oferece ou porque é essencial no combate ao colapso climático, o território ainda oferece solo fértil para o imaginário: se antes os encantados dos rios e matas assombravam as noites sem lua, hoje eles denunciam a violência do homem em aparelhos eletrônicos defeituosos, e nos enviam visões.

Ailton Krenak, talvez a principal voz indígena da geração, já avisa desde 2019 em seu “Ideias para adiar o fim do mundo” que há sim formas de repelirmos o apocalipse, desde que ouçamos os gritos ancestrais que incessantemente calamos. Os indígenas oferecem mil e uma formas de nos relacionarmos de forma positiva com o mundo, mas devemos abrir mão de nosso estilo de vida movido a consumir mais do que cultivar.

Abrir mão parece pesado demais, então os poderosos seguem sacrificando a Terra, e nós, que não temos sangue azul, somos a primeira parcela do preço.

A ansiedade e o desconforto que nascem desses dilemas criam imagens diversas sobre o futuro do planeta, e com a Amazônia sendo o palco centro do Antropoceno, cabe ao amazônida conjurar as imagens que podem decidir o futuro da raça humana. Inspirado pelo movimento afrofuturista, que reimagina a trajetória do continente africano caso a Europa tivesse se mantido onde deveria, o artista rondoniense João Queiroz apresenta o Amazofuturismo:

Artes de João de Queiroz.

Assim, os povos nativos do norte do país são retratados como potências tecnológicas, pioneiros no uso do sol e do vento como combustíveis não poluentes que lhes garantiriam um boom no domínio e na produção de novas tecnologias. Além de impressionante, o trabalho de Queiroz é justamente uma tapeçaria de possibilidades, não para que mudemos o passado, mas para que tenhamos referências saudáveis de futuro.

Movimentos como o Amazofuturismo – e a inquietação causada pela pandemia de COVID-19 – foram a inspiração para que o Coletivo Visagem, em 2020, publicasse com incentivo da Lei Aldir Blanc a antologia “Encantarias vol. 1 – Histórias de uma Amazônia futurista”, um conjunto de seis histórias de autores locais que trazem versões do mundo após a queda de nossa civilização.

Eu, Carol Peace, Luiz Andrade, Dante Saboia, Jefter Haad e Leila Plácido nos juntamos para contar nossas concepções sobre como a catástrofe capitalista colide com o mundo amazônico, e os resultados não poderiam ser mais divergentes. Oferecemos pontos de vista bastante diferentes acerca do futuro que visualizamos para a região, e nenhum floresce sem que antes enfrentemos a mudança da vida como conhecemos.

Ilustração de Yan Bentes para o livro ‘Encantarias’, do Coletivo Visagem.

Dos membros do Visagem, vários já experimentaram brincar com o fim do mundo em trabalhos anteriores, mas é Leila Plácido que, anos antes, lança um dos textos mais singulares sobre o assunto. Trata-se de “Quase o fim” (Lendari, 2016), obra de estreia da escritora composta apenas pelas páginas de diário da jovem Zoé, manauara que testemunha o ataque à cidade por uma elite desejosa de erradicar o excedente populacional do planeta.

Arte: Reprodução/Lendari

O diferencial do livro é a perspectiva: Zoé é uma jovem mimada que, subitamente, precisa garantir a própria sobrevivência frente à sociedade que se desfaz um bombardeio de cada vez. Seu trajeto também é bastante peculiar, uma vez que atravessa pontos bastante familiares a cada manauara, como a Avenida Torquato Tapajós, em busca de refúgio nas cachoeiras de Presidente Figueiredo. Na tentativa de fugir das tentativas de genocídio dessa misteriosa elite, Zoé desbrava as rodovias da cidade de Manaus em busca de salvação na natureza, em um exôdo urbano que dialoga inclusive com a jornada que nos recusamos a trilhar.

Seria necessário um holocausto, como o de Zoé, para que o façamos? Espero que nossa experiência com a pandemia não seja um indicativo dessa resposta.

Por outro lado, o futuro encontra outras formas de se manifestar, por vezes dando as costas ao passado. Ecoando o que também Krenak desenvolve em outra de suas publicações, “Futuro Ancestral”, a paraense Giu Murakami cria uma Belém futurista, onde os mais ricos vivem em construções acima do chão e os mais pobres lutam contra um regime que suprime suas crenças tradicionais.

Arte: Reprodução/Folheando

Essa é a premissa de “Aprendiz de Erveira” (Folheando, 2023), obra infantojuvenil na qual a protagonista, Irina, moradora da Belém-de-Baixo, redescobre um mundo fantástico por meio de seu interesse por banhos-de-cheiro, mas como a desobediência é a marca dos jovens heróis e heroínas do gênero, suas descobertas podem repercutir de maneiras imprevisíveis. O que me fisgou na história de Irina é a eterna disputa entre progresso e tradição, como se não houvesse desenvolvimento sem que queimemos aquilo que nos enraíza, como se não houvesse novo sem o velho. De maneira despretensiosa, Murakami tenta provar que é sim possível cultivarmos um futuro ancestral.

Tais histórias oferecem referências mais do que abundantes sobre as possibilidades de futuro que temos em nossas mãos, uma verdadeira coleção de imagens que ilustram o resultado das escolhas que fazemos (ou não). No entanto, é indispensável lembrar que optar por esta ou aquela possibilidade por vezes escapa às nossas mãos, uma vez que garantir o futuro não é uma escolha individual.

Como temos pensado essa coletividade? Sequer pensamos em coletividade?

Em um país continental rico em biodiversidade e santuário de uma das maiores reservas de água doce do mundo, é indispensável que conversemos mais sobre como temos defendido essa riqueza, uma vez que, conforme sentimos com mais força o impacto da crise climática, em breve é possível que enfrentemos dificuldades não previstas sequer pela ficção científica.

Sobre o autor

Jan Santos é autor de contos e novelas, especialmente do gênero Fantasia. Mestre em Literatura pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e com graduações em Língua Portuguesa e Inglesa, é um dos membros fundadores do Coletivo Visagem de Escritores e Ilustradores de Fantasia e Ficção Científica, além de vencedor de duas edições dos prêmios Manaus de Conexões Culturais (2017-2019) e Edital Thiago de Mello (2022).

*O conteúdo é de responsabilidade do colunista

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